LUTA CONTRA AS DROGAS - O HOMEM QUE REFEZ SEU CAMINHO LONGE DO CRACK

Publicação de 09/04/2015


Luta contra as drogas - O homem que refez seu caminho longe do crack
Zero Hora

Rodrigo de Souza Barros completa no final deste mês cinco anos de abstinência total. Depois de quase duas décadas arruinadas por álcool, maconha, cocaína e crack, ele celebra as pequenas coisas da vida: trabalhar, desenvolver um hobby, olhar-se no espelho, tomar banho com o filho


O homem que refez seu caminho longe do crack Diego Vara/Agencia RBS
Rodrigo e a câmera, sua nova companheira Foto: Diego Vara / Agencia RBS
Os maiores desatinos eram cometidos de madrugada. Naquela noite de março de 2009, a intenção inicial tinha sido a de deitar e dormir, mas a fissura o manteve insone. Por volta das 4h, Rodrigo de Souza Barros, no auge de uma trajetória de quase duas décadas como dependente químico, arrancou de dentro de casa a cama de casal do relacionamento de 10 anos recém-desfeito. 
O modelo box, com suporte e colchão, não tinha nem um ano de uso. Carregaram o móvel por oito quadras, ele e um conhecido, a pé, até uma vila da zona leste de Porto Alegre. Demoraram a chegar. Paravam a intervalos de poucos passos para que Rodrigo, sentindo-se fraco, pudesse descansar os braços.
– Trouxe uma cama – anunciou ao chegar à boca de fumo.
Acostumado ao fluxo de eletrodomésticos e celulares, o traficante custou a acreditar:
– Uma cama?
Avaliada em R$ 100, pelo menos 10 vezes menos do que havia custado na loja, a cama foi trocada por 20 pedras de crack: metade para Rodrigo, metade para o companheiro de frete. Foi o objeto de maior valor negociado por drogas. Não houve arrependimento.
– No final eu já não tinha sentimento nenhum – recorda.
Rodrigo chega neste mês a cinco anos de completa abstinência – considerando o período de internação para tratamento, são cinco anos e nove meses sem qualquer recaída.
Zero Hora o acompanha desde o dia 29 abril de 2010, quando ele deixou a Fazenda do Senhor Jesus, comunidade terapêutica administrada pela Pastoral de Auxílio ao Toxicômano (Pacto – POA), na Lomba Verde, interior de Viamão. 
Despediu-se dos colegas ao amanhecer, tomando a estrada de chão rumo à parada de ônibus, com as poucas posses em uma mochila e duas pequenas malas de mão: peças de roupa, uma Bíblia, tocos de sabão, um terço, uma cuia, cartas, uma pena de arara como lembrança da lida no campo.
Com R$ 15 no bolso, aos 34 anos, o ex-garçom recomeçava sóbrio depois da sequência devastadora de álcool, maconha, cocaína e crack. Naquela quinta-feira, a reportagem refez com ele o caminho de volta para casa, no bairro Santa Cecília, em Porto Alegre.
Aguardavam-no relações familiares ainda frágeis, numa atmosfera de desconfiança e esperança em porções quase iguais. Impunha-se o desafio de tomar um rumo profissional e de se manter para sempre vigilante: um dependente químico jamais estará curado.
Demitido por conta do estigma
De lá para cá, Rodrigo trabalhou em estacionamentos e lavagens de carro, lojas de móveis, comunidades terapêuticas. Em maio de 2013,uma nova reportagem em ZH, publicada em uma edição de domingo, celebrou os três anos em que estava “limpo”.
As três páginas lhe custaram o emprego da época, como auxiliar estoquista. Carregando, montando e desmontando mobília, Rodrigo notou o olhar diferente da patroa já no expediente da segunda-feira. Na terça, veio o comunicado formal.
– Seu trabalho não é mais necessário – disse a funcionária do departamento pessoal.
Seis candidatos à vaga foram testados em um mês. Como nenhum deles aguentou o serviço pesado, Rodrigo acabou sendo readmitido. Seguiram-se uma lesão no menisco, meio ano em licença médica e perigosos meses de desemprego – a falta de ocupação e a cabeça vazia são as maiores ameaças a um usuário de drogas em recuperação.
Atualmente, aos 39 anos, Rodrigo é secretário na Paróquia Santíssimo Sacramento e Igreja Santa Terezinha, em frente à Redenção. Agenda batizados e casamentos, intermedeia o contato entre padres e fiéis e encanta as idosas por ser um funcionário educado e paciencioso, disposto a se estender em explicações bem detalhadas.
– Ele tem a capacidade de assumir o erro que cometeu. Essa sinceridade que brota do coração vai somando como pontos positivos – avalia o frei Marcelo Streit, que o convidou para a função.
Três vezes com Helena
Rodrigo é casado com a assistente fiscal Helena Russo, 34 anos, um amor de adolescência. Vizinhos, namoraram em três momentos marcantes. Na primeira vez, aos 12 anos, ela não sabia precisar exatamente o que ele, seis anos mais velho, tinha de diferente.
Rodrigo fumava, bebia e cheirava escondido. Os pais de Helena não aceitavam a relação, e o rompimento foi decidido não pelo casal, mas pelos adultos. Aos 22, reaproximaram-se, mas por pouco tempo – Helena não suportou o constante estado de alteração do companheiro.
Há dois anos, no dia em que perdera o emprego, encontrou uma solicitação de amizade dele ao entrar no Facebook. Conversaram pelo chat e por telefone. Saíram para jantar no dia seguinte. Era evidente a mudança.

– Ai, você sabe como é a coisa... – alertou a mãe dela, ao saber da reaproximação, ressabiada após um caso de alcoolismo na família.
Pai de um menino de nove meses, com Helena, e de uma menina de três, de outro relacionamento, Rodrigo tem uma rotina quase imutável, que se resume a pouco mais do que ir de casa para o trabalho, do trabalho para casa.
Apresenta-se em missas tocando violão e bateria. Descobriu há pouco a fotografia, fez um curso para obter as noções básicas e agora tem sempre a Nikon 5200, de segunda mão, a tiracolo.
Entra no carro e ajusta as configurações da câmera, deixando-a pronta para qualquer imprevisto ou curiosidade que lhe atravessar o caminho. Gosta de retratar o pôr do sol, rostos desconhecidos, a vida em tempo real – ouviu de uma fotógrafa a frase “meu estúdio é a rua” e a pegou emprestada.
Orgulha-se por ser o principal responsável pelo orçamento doméstico, mantendo as contas em dia, suprindo as inúmeras exigências de uma criança pequena e até se permitindo, no supermercado, comprar agrados para a mãe, a pensionista Guacira Jussara, 61 anos.
Por mais tranquila que seja a rotina atual em relação ao inferno de outros tempos, o filho não permite que se fale em cura.
– Mãe, não diz que eu estou curado.
– Mas eu acredito em Deus. Você está curado.
– Vou te fazer uma pergunta então: posso ir ali comprar uma cerveja?
– Não!
– Então eu não estou curado. Isso é uma doença.
Acorrentado pela mãe
Além da ex-mulher, que desistiu de acreditar nas promessas sem fundamento e partiu para não mais voltar num dia em que Rodrigo fumou 30 pedras de crack no banheiro, Guacira foi quem testemunhou os piores momentos. Acorrentou o filho três vezes, tentando impedi-lo de sair porta afora, deixando-a prostrada, impotente.
Tinham brigas ferozes, uma competição ressentida de gritos, a mãe exigindo respeito, o filho a ignorando. Guacira chegou a usar um sarrafo para lhe dar uma surra. Atordoada pela falta de apoio, sem referências sobre como conter um dependente químico, a viúva corria para o posto de saúde, amparando-se no guichê de entrada, suplicante:
– Chama o doutor, pelo amor de Deus. O caso é de vida ou morte.
Antes do tratamento efetivo, com os nove meses de trabalho e reclusão na Fazenda do Senhor Jesus, Rodrigo obteve orientações em um programa de redução de danos para usuários de substâncias psicoativas promovido pela rede municipal de saúde, em Porto Alegre.
Um atendente recomendou que procurasse compor um ambiente de relaxamento em casa, comprando algumas guloseimas. Quando o desejo se provasse incontornável, que Rodrigo tentasse se saciar com um baseado antes de recorrer ao crack.
Guacira não aprovou a parte que previa o cigarro de maconha, mas resolveu conceder ao primogênito um mínimo de confiança. Fez um teste: comprou doces e um litrão de Coca-Cola. Emprestou a Rodrigo uma televisão portátil para se distrair na casa vazia.
Àquela altura, quase tudo havia sido vendido e trocado por crack: duas TVs, dois ventiladores, um micro-ondas, um liquidificador, panelas, talheres. Na ausência de gavetas e armários, as roupas que haviam sobrado, surradas, estavam pelo chão.
– Então tá, meu filho. Come as coisinhas que a mãe comprou e não sai pra rua. Amanhã de manhã a mãe vem pra te dar o remédio – disse Guacira ao se despedir.
O sucesso do experimento não durou mais do que alguns minutos. Rodrigo correu com o eletrônico para um ponto de táxi do bairro Petrópolis aonde costumava ir para obter dinheiro rápido. Reconhecendo-o ao longe, os motoristas abriam as portas dos carros, interessados na pechincha do momento:
– Que que tem aí, gordo?
Sempre baixas, de poucos trocados, as ofertas por vezes eram acompanhadas de caronas: o taxista que adquiria o produto fazia o favor de levar Rodrigo até a vila. Naquele dia, a TV saiu por R$ 10. O fio, uma extensão de 15 metros, por R$ 30. Concluída a transação, ele seguiu a pé até a boca de fumo. 
Sufocando o desejo pelo “pancadão”
Guacira, a exemplo dos outros dois filhos, desistiu de frequentar há alguns anos os encontros regulares de grupos de apoio a familiares. Dias atrás, resolveu voltar a uma das reuniões na Igreja Sagrada Família, na Cidade Baixa. Reencontrou antigos conhecidos e deu um depoimento, apresentando-se a quem ainda não a conhecia.
– Sou mãe de um dependente químico em tratamento. Só sabe quem passou isso na pele. Cheguei a ponto de matá-lo, não nego. Ele estava terminando com a minha vida, com cada segundo de vida – relatou Guacira. – Hoje eu tenho orgulho do meu filho.
A trajetória não é linear, isenta de percalços. Dividindo o mesmo endereço, ele no térreo e ela no piso superior, Rodrigo e Guacira ainda tropeçam nos desentendimentos comuns a pais e filhos, mas nada que se assemelhe ao passado.
– Não vou te dizer que ele é santo. Errar, todos nós erramos. Até eu, que nunca usei droga. Mas me policio, tento mudar. Já mudei muito do que eu era. O Rodrigo vem mudando. A cada dia que passa ele me surpreende – elogia a mãe. – A religiosidade dele é tão espetacular, tão espetacular, que chego a me arrepiar. O que você perguntar da Bíblia ele responde.
Um dos maiores desafios do usuário em recuperação é dar novo significado à existência sem a possibilidade de refúgio em entorpecentes. São horas e horas a serem preenchidas com outros propósitos que não o ciclo perverso que perpetua o consumo.
No ônibus que o levou para o abraço da mãe, há cinco anos, Rodrigo admitiu que, terminado o tratamento, ainda tinha vontade de preparar um cachimbo e sentir o “pancadão”, a vertigem de prazer proporcionada pela primeira tragada na pedra.
Com o tempo, a vontade arrefeceu, é bem menos frequente, mas a estratégia para sufocá-la é similar: procura alguém para conversar, geralmente um dos freis da paróquia, e reza.
– Parece que o capeta sempre dá uma cutucada – define.
No auge da dependência, quando entregou a cama no ponto de tráfico, Rodrigo, como a mãe, também pensava em morte. Ansiava por um desfecho para aquele tormento que exauria a família.
Imaginava-se caindo por tiro ou overdose. Recluso na fazenda, passou a ouvir dos monitores o apelo para que encarasse a própria imagem:
– Te olha no espelho, gosta de ti.
Cinco anos depois da desintoxicação e do recomeço, Rodrigo se considera um homem bonito. Aprecia o cavanhaque e o bigode com as pontas arrematadas para cima, estilo copiado de um desconhecido no supermercado.

Faz graça para justificar os 15 quilos de sobrepeso – alega que compartilhou os desejos de Helena durante a gestação. É um pai faceiro, tem gosto por dividir as tarefas, adora tomar banho com o nenê. Não pretende esconder nada dos filhos no futuro.
Hoje, diante do espelho, ele consegue examinar o próprio rosto. Fala sozinho:
– Viu? Eu disse que as coisas iam melhorar.

Fonte: Zero Hora por Larissa Roso

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